As consequências da crise financeira que afecta a economia mundial são extremamente graves e, neste momento, certamente desconhecidas. Contudo, as comparações com as crises económicas mais importantes do século passado são escassamente pertinentes. É verdade que a crise que se seguiu ao crash de 1929 foi de carácter financeiro, mas a intensidade da crise naquela altura parece irrepetível neste momento. Em 1930 o PIB americano caiu mais de 8,5%, no ano seguinte, à volta de 6,5%, para voltar a cair com mais intensidade em 1932, aproximadamente, 13% num único ano. Na crise energética posterior a 1973, a componente financeira teve muito menos protagonismo, e não houve nem uma restrição creditícia nem uma queda do preço dos activos tão acentuada como as verificadas na crise que no início da década de trinta abalou a economia americana. Na década de 70 o principal problema foi a inflação provocada pelo forte incremento do preço das matérias-primas, fundamentalmente do petróleo, que deu origem a uma forte contracção da procura de consumo e investimento e, consequentemente, das taxas de crescimento do PIB.
Apesar dos problemas no sector financeiro americano e britânico poderem indiciar que a crise actual é uma crise de liquidez, convém não esquecer que os problemas se iniciaram no mercado imobiliário. A explosão da bolha especulativa em torno das acções tecnológicas em 2001 fez com que a Reserva Federal Americana (Fed) reduzisse rapidamente a taxa de juro em mais de 5 pontos percentuais para 1%. A facilidade de acesso ao crédito impulsionou a procura de habitação como activo de investimento, face a outras alternativas como os mercados de acções ou os depósitos remunerados. O crescimento da procura no mercado imobiliário impulsionou o preço destes activos, que nos últimos dez anos se multiplicou praticamente por dois. Esta dinâmica intensificou-se pelo papel desempenhado pelo sistema bancário, que alimentou o crescimento da procura através da concessão massiva de empréstimos hipotecários. A estratégia dos bancos era conseguir compensar as perdas derivadas da redução das margens de intermediação por duas vias: 1) pelo incremento do volume de transacções hipotecárias; e 2) pela universalização do acesso a este tipo de produtos a camadas da população com perfis de risco menos favoráveis. Estes novos clientes, denominados ninjas (no income, no jobs or assets – sem rendimento, sem trabalho, sem património), tornavam-se mais rendíveis para os bancos, dado que estes poderiam cobrar um juro mais elevado que compensasse o maior risco associado a estes empréstimos hipotecários, denominados subprime. Esta estratégia é certamente arriscada quando é seguida por uma entidade isolada, mas torna-se extremamente perigosa quando passa a ser uma prática generalizada no mercado hipotecário. Além disso, assenta em dois pressupostos pouco prováveis no médio prazo: a revalorização continua dos activos imobiliários e a inexistência de ciclos económicos. As necessidades de financiamento das entidades hipotecárias, geradas pelo incremento do número de hipotecas, levaram-nas a desenvolver uma política de captação massiva de fundos junto de investidores institucionais, tanto americanos como estrangeiros. Para facilitar a colocação desses activos hipotecários recorreram à titularização dos mesmos, isto é, criaram pacotes denominados MBS (Obrigações Garantidas por Hipotecas), que incluíam tanto hipotecas prime (concedidas a clientes solventes) como as referidas hipotecas subprime. Estes títulos eram posteriormente comprados por entidades filiais, denominadas conduits, que eram as encarregues de vendê-los a investidores institucionais oferecendo uma remuneração atractiva.
O papel dos conduits nesta engrenagem é fundamental, dado que, ao serem considerados fundos ou trusts, não têm a obrigação de consolidar as suas contas com o banco matriz, pelo que estão isentos do cumprimento das Normas de Basileia, que versam sobre a relação permanente que deve existir entre capital e activos no sector bancário. O papel dos investidores institucionais também é chave na extensão metastática da crise, dado que compraram e venderam cegamente produtos financeiros, cujo valor real se escondia atrás de complexas titularizações em cadeia. Calcula-se que nos últimos anos foram concedidos, nos Estados Unidos, créditos hipotecários, a pessoas escassamente solventes, de uma importância superior a 900.000 milhões de dólares, os quais foram posteriormente titularizados e vendidos a investidores institucionais, nomeadamente a bancos de investimento e a fundos de pensões. A generalização destas práticas pouco ortodoxas no mercado hipotecário e o contágio dos riscos associados, através de titularizações sucessivas de activos sem valor, nos mercados de investimento, estão na base de uma crise financeira de proporções, neste momento, absolutamente desconhecidas.
O abrandamento da economia americana e a quebra do mercado imobiliário deitaram por terra os pressupostos nos quais assentou o crescimento das hipotecas subprime. As dificuldades que as principais agências hipotecárias americanas, Fannie Mae e Freddie Mac, mostraram nos últimos meses não faziam pressagiar nada de bom. A recente intervenção do governo americano nestas agências teve como objectivo impedir a sua falência, evitando um potencial contágio sistémico com consequências de dimensão global. A perda de valor dos activos (MBS) e a impossibilidade de financiar as ampliações de capital necessárias para compensar essas perdas, pela escassez de liquidez nos mercados, provocou graves problemas na banca de investimento americana. Os casos mais notórios foram os de Bern Stearns, que teve de ser resgatado por uma entidade pública, o de Merrill Lynch, que foi comprado por um terceiro (Bank of América), e o de Lehman Brothers, que perante a impossibilidade de ser resgatado ou comprado teve de optar por abrir falência. Dias depois, a seguradora AIG, a maior dos Estados Unidos, que avalizou muitas das emissões de obrigações dos grandes bancos de investimento, recebeu da Fed um crédito ponte de 85.000 milhões de dólares em troca de 80% do seu capital, numa espécie de nacionalização encoberta, para evitar uma falência incontornável. Os graves problemas de liquidez nos mercados, verificados nas últimas semanas, foram parcialmente resolvidos mediante injecções isoladas dos bancos centrais e através de uma acção coordenada dos seis bancos centrais mais importantes do mundo, que decidiram, na passada quinta-feira, injectar 180.000 milhões de dólares no sistema. A queda das cotações dos bancos nas principais praças financeiras mundiais, aliada aos problemas anteriormente descritos, fez com que no final da semana passada houve-se novas compras de entidades em sérias dificuldades (HBOS, o maior banco hipotecário britânico foi comprado por Lloyds TSB) e que se anunciassem algumas tentativas de fusão de carácter defensivo (Morgan Stanley e Wachovia).
A principal consequência financeira, no curto prazo, destes desequilíbrios é que os bancos dos países industrializados ver-se-ão fortemente penalizados nos mercados de investimento, independentemente da sua exposição aos produtos financeiros que originaram a crise, como consequência da conjuntura de medo generalizado que paira sobre os mercados. As restrições no acesso ao crédito nessas economias serão progressivamente maiores e o impacto sobre a economia real será muito significativo, razão pela qual a recuperação da economia Europeia será mais lenta do que inicialmente previsto. Uma das lições que deve ser tirada desta crise é que o desenvolvimento de produtos financeiros sofisticados precisa de sistemas de supervisão e de controlo de risco igualmente complexos. A outra, é que as economias nacionais estão extremamente expostas ao fenómeno globalizador, nomeadamente, à globalização financeira. As vantagens desta são inegáveis, mas os riscos, com níveis de supervisão como os actuais, são extremamente altos. A dimensão reguladora do Estado deve sair reforçada desta crise, para evitar que os fundos públicos continuem a ser utilizados para socializar as perdas de empresas privadas, com gestores escassamente avessos ao risco, excessivamente ambiciosos e provavelmente muito negligentes.
Apesar dos problemas no sector financeiro americano e britânico poderem indiciar que a crise actual é uma crise de liquidez, convém não esquecer que os problemas se iniciaram no mercado imobiliário. A explosão da bolha especulativa em torno das acções tecnológicas em 2001 fez com que a Reserva Federal Americana (Fed) reduzisse rapidamente a taxa de juro em mais de 5 pontos percentuais para 1%. A facilidade de acesso ao crédito impulsionou a procura de habitação como activo de investimento, face a outras alternativas como os mercados de acções ou os depósitos remunerados. O crescimento da procura no mercado imobiliário impulsionou o preço destes activos, que nos últimos dez anos se multiplicou praticamente por dois. Esta dinâmica intensificou-se pelo papel desempenhado pelo sistema bancário, que alimentou o crescimento da procura através da concessão massiva de empréstimos hipotecários. A estratégia dos bancos era conseguir compensar as perdas derivadas da redução das margens de intermediação por duas vias: 1) pelo incremento do volume de transacções hipotecárias; e 2) pela universalização do acesso a este tipo de produtos a camadas da população com perfis de risco menos favoráveis. Estes novos clientes, denominados ninjas (no income, no jobs or assets – sem rendimento, sem trabalho, sem património), tornavam-se mais rendíveis para os bancos, dado que estes poderiam cobrar um juro mais elevado que compensasse o maior risco associado a estes empréstimos hipotecários, denominados subprime. Esta estratégia é certamente arriscada quando é seguida por uma entidade isolada, mas torna-se extremamente perigosa quando passa a ser uma prática generalizada no mercado hipotecário. Além disso, assenta em dois pressupostos pouco prováveis no médio prazo: a revalorização continua dos activos imobiliários e a inexistência de ciclos económicos. As necessidades de financiamento das entidades hipotecárias, geradas pelo incremento do número de hipotecas, levaram-nas a desenvolver uma política de captação massiva de fundos junto de investidores institucionais, tanto americanos como estrangeiros. Para facilitar a colocação desses activos hipotecários recorreram à titularização dos mesmos, isto é, criaram pacotes denominados MBS (Obrigações Garantidas por Hipotecas), que incluíam tanto hipotecas prime (concedidas a clientes solventes) como as referidas hipotecas subprime. Estes títulos eram posteriormente comprados por entidades filiais, denominadas conduits, que eram as encarregues de vendê-los a investidores institucionais oferecendo uma remuneração atractiva.
O papel dos conduits nesta engrenagem é fundamental, dado que, ao serem considerados fundos ou trusts, não têm a obrigação de consolidar as suas contas com o banco matriz, pelo que estão isentos do cumprimento das Normas de Basileia, que versam sobre a relação permanente que deve existir entre capital e activos no sector bancário. O papel dos investidores institucionais também é chave na extensão metastática da crise, dado que compraram e venderam cegamente produtos financeiros, cujo valor real se escondia atrás de complexas titularizações em cadeia. Calcula-se que nos últimos anos foram concedidos, nos Estados Unidos, créditos hipotecários, a pessoas escassamente solventes, de uma importância superior a 900.000 milhões de dólares, os quais foram posteriormente titularizados e vendidos a investidores institucionais, nomeadamente a bancos de investimento e a fundos de pensões. A generalização destas práticas pouco ortodoxas no mercado hipotecário e o contágio dos riscos associados, através de titularizações sucessivas de activos sem valor, nos mercados de investimento, estão na base de uma crise financeira de proporções, neste momento, absolutamente desconhecidas.
O abrandamento da economia americana e a quebra do mercado imobiliário deitaram por terra os pressupostos nos quais assentou o crescimento das hipotecas subprime. As dificuldades que as principais agências hipotecárias americanas, Fannie Mae e Freddie Mac, mostraram nos últimos meses não faziam pressagiar nada de bom. A recente intervenção do governo americano nestas agências teve como objectivo impedir a sua falência, evitando um potencial contágio sistémico com consequências de dimensão global. A perda de valor dos activos (MBS) e a impossibilidade de financiar as ampliações de capital necessárias para compensar essas perdas, pela escassez de liquidez nos mercados, provocou graves problemas na banca de investimento americana. Os casos mais notórios foram os de Bern Stearns, que teve de ser resgatado por uma entidade pública, o de Merrill Lynch, que foi comprado por um terceiro (Bank of América), e o de Lehman Brothers, que perante a impossibilidade de ser resgatado ou comprado teve de optar por abrir falência. Dias depois, a seguradora AIG, a maior dos Estados Unidos, que avalizou muitas das emissões de obrigações dos grandes bancos de investimento, recebeu da Fed um crédito ponte de 85.000 milhões de dólares em troca de 80% do seu capital, numa espécie de nacionalização encoberta, para evitar uma falência incontornável. Os graves problemas de liquidez nos mercados, verificados nas últimas semanas, foram parcialmente resolvidos mediante injecções isoladas dos bancos centrais e através de uma acção coordenada dos seis bancos centrais mais importantes do mundo, que decidiram, na passada quinta-feira, injectar 180.000 milhões de dólares no sistema. A queda das cotações dos bancos nas principais praças financeiras mundiais, aliada aos problemas anteriormente descritos, fez com que no final da semana passada houve-se novas compras de entidades em sérias dificuldades (HBOS, o maior banco hipotecário britânico foi comprado por Lloyds TSB) e que se anunciassem algumas tentativas de fusão de carácter defensivo (Morgan Stanley e Wachovia).
A principal consequência financeira, no curto prazo, destes desequilíbrios é que os bancos dos países industrializados ver-se-ão fortemente penalizados nos mercados de investimento, independentemente da sua exposição aos produtos financeiros que originaram a crise, como consequência da conjuntura de medo generalizado que paira sobre os mercados. As restrições no acesso ao crédito nessas economias serão progressivamente maiores e o impacto sobre a economia real será muito significativo, razão pela qual a recuperação da economia Europeia será mais lenta do que inicialmente previsto. Uma das lições que deve ser tirada desta crise é que o desenvolvimento de produtos financeiros sofisticados precisa de sistemas de supervisão e de controlo de risco igualmente complexos. A outra, é que as economias nacionais estão extremamente expostas ao fenómeno globalizador, nomeadamente, à globalização financeira. As vantagens desta são inegáveis, mas os riscos, com níveis de supervisão como os actuais, são extremamente altos. A dimensão reguladora do Estado deve sair reforçada desta crise, para evitar que os fundos públicos continuem a ser utilizados para socializar as perdas de empresas privadas, com gestores escassamente avessos ao risco, excessivamente ambiciosos e provavelmente muito negligentes.
FRANCISCO CARBALLO-CRUZ
(artigo de opinião publicado na edição de hoje do Suplemento de Economia do Diário do Minho, produzido no contexto de colaboração em coluna regular intitulada "Desde a Gallaecia")
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