Espaço de debate de temas de Economia Portuguesa e de outros que com esta se relacionam, numa perspectiva de desenvolvimento

terça-feira, março 01, 2011

O endividamento das famílias

1. Por endividamento entende-se o saldo devedor de um agregado familiar. Este é por norma associado a créditos, ao consumo (de bens ou serviços correntes e de bens duradouros) ou à aquisição de imóveis. No caso português, o endividamento tem andado sobretudo associado à aquisição de habitação própria.
2. O recurso ao crédito é algo inerente ao modelo de sociedade actual e, neste contexto, não assume carga negativa. O crédito permite aos consumidores um maior consumo no presente, contribuindo para a satisfação de necessidades e a realização de desejos que os rendimentos presentes não viabilizam. A questão só muda de figura quando o crédito é utilizado para satisfazer necessidades fúteis e, sobretudo, porque muitas das decisões de contracção de créditos que são tomadas não atendem à capacidade futura de solver a dívida, isto é, estão na origem de situações de incumprimento dos compromissos contraídos.
3. Em notícia de 19 de Maio de 2009, a rádio TSF noticiava que o endividamento das famílias portuguesas era o segundo mais elevado da Europa. Invocava, para o efeito, os resultados de um relatório do Banco de Portugal divulgado pouco antes, reportado a 2008, em que a instituição em causa alertava para a ameaça de acentuação das situações de crédito mal parado com que a banca já se vinha confrontando. Curiosamente, em primeiro lugar nesta lista apresentava-se a Holanda, que sabemos integrar um grupo de países com economias bem mais consolidadas que a portuguesa e com padrões de vida configurando um maior nível de bem-estar.
4. De acordo com o relatório em causa, esse endividamento resultava em cerca de 75% de crédito bancário contraído para aquisição de habitação. Mais se acrescentava que os empréstimos bancários para habitação representavam, já em 2008, mais de 90% do rendimento disponível das famílias portuguesas. Esta situação punha carga dramática adicional na realidade retratada, uma vez que qualquer instabilidade que se viesse a verificar no orçamento dos indivíduos arrastava imediatamente o espectro do incumprimento.
5. A invocação deste risco não era em vão dada a situação de crise financeira e económica que se vivia na Europa e nos Estados Unidos, e, logo, também em Portugal, sendo certo que, desde então, por força dos défices públicas e da crise da dívida do país, a situação não deixou de agravar-se. Na verdade, não só o crédito foi ficando cada vez mais caro, como a situação em matéria de emprego e as perspectivas de relançamento económico foram sendo transferidas para momentos futuros cada vez mais afastados. Atente-se a este propósito nos dados mais actuais em matéria de desempenho da economia portuguesa, de que são expressão a taxa média de desemprego, que vai nos 11,1% (dados do INE do 4º trimestre de 2010), e o quadro económico recessivo de que falava o governador do Banco de Portugal há poucos dias, e que é quase certo vir a estender-se ao conjunto do ano de 2011, pelo menos.
6. O resultado a que se chegou no que ao endividamento das famílias respeita, não surgiu de um dia para o outro e tem razões várias. No que à evolução do fenómeno se refere, é relevante assinalar que o endividamento das famílias teve um forte incremento a partir dos anos 90. Em concreto, este passou de cerca de 19,6% do rendimento disponível das famílias, em 1990, para 92%, no ano 2000, situando em 2008 já em 129%, número que configura indisfarçável sobre-endividamento, posto que, em termos médios, significava incapacidade de cobertura da dívida a partir dos rendimentos correntes auferidos. Em situação limite, o aumento do crédito às famílias chegou a ser de 15% de um ano para o outro (de 1998 para 1999).
7. Esta expansão do nível de endividamento encontrou razões do lado da oferta e da procura de crédito. Do lado da oferta, pode-se mencionar, em especial, a liberalização e a desregulamentação das operações bancárias visando os particulares e, também, os regimes de subsídio das taxas de juro praticadas no crédito à habitação. Do lado da procura, cumpre destacar a descida verificada nas taxas de juro, associada à diminuição das taxas de inflação e ao aumento da concorrência entre operadores na captação de clientes. A conjugação destes factores ditou a situação de endividamento a que se chegou, sendo que é a reversão da situação vigente no mercado bancário e o quadro económico geral do país o que justifica a situação de alarme com que o fenómeno é encarado no momento actual.
8. Entendido o modo como se chegou aqui, fica criado espaço para que melhor se perceba como gerir o problema que está criado e perspectivar actuações que evitem que se venham a verificar situações futuras da mesma natureza. Na componente gestão do processo, vão no bom sentido instrumentos que, em contexto de carência absoluta, substituam às famílias na liquidação dos débitos aos bancos, no curto/médio prazo. Na perspectiva da actuação projectada para o futuro, a informação e formação dos indivíduos afigura-se peça central. Na verdade, não se percebe porque não se apetrecham os jovens com noções básicas como são o custo do dinheiro, as virtudes da poupança, a gestão de um orçamento familiar, o risco económico, etc. Porventura, também aqui, pela via dos filhos, se pudesse sensibilizar os pais e, logo, chegar a resultados satisfatórios a não muito largo prazo.

J. Cadima Ribeiro

(artigo de opinião publicado na edição de 2011/02/01, do Suplemento de Economia do Diário do Minho, em coluna regular intitulada "A Riqueza das Regiões")

2 comentários:

rr disse...

Estou a tentar obter uma estimativa do impacto que a subida de 1 ponto percentual nas taxas de juro tem no rendimento disponível das famílias portuguesas. Já procurei muito na net mas sem sucesso. Tem alguma sugestão?
Cumprimentos

J. Cadima Ribeiro disse...

Caro Ramon Diaz,
Quem habitualmente trabalha esses dados é o Banco de Portugal, isto é, o respectivo gabinete de estudos. Não sei se produziu algum relatório recente sobre essa matéria.
Não existindo esse cálculo feito. A alternativa que tem é tentar chegar a uma estimativa a partir dos valores absolutos das variáveis relevantes.
Lamento não ter outros dados que possa fornecer-lhe.
Cordiais cumprimentos,