Tenho comigo um
livro sobre a história económica do Brasil (A
Trilha Perdida: caminhos e descaminhos do desenvolvimento baiano no século XX)
que, como o subtítulo indica, dá uma especial atenção à evolução da realidade
regional da Bahia. Foi oferta do seu autor, Noelio Dantaslé Spinola, há mais de
um ano, e tem como data de edição o ano de 2009 (Edição da UNIFACS). Aguardava
desde então a oportunidade do ler.
A curiosidade que me suscita(va) a economia e a sociedade brasileiras,
passadas e presentes, juntamente com a circunstância do seu autor ser
coorientador de uma minha doutoranda brasileira incitaram-me nesse sentido. Por
contraponto, a falta de tempo, conjugada com a extensão da obra (527 páginas),
foram retardando o desencadear dessa leitura. Uma deslocação ao Brasil este
Verão, com a conexa multiplicação de horas de voo, propiciou-me a oportunidade
de fazê-lo.
Antes de me referir brevemente a alguns elementos de curiosidade que
encontrei no livro em referência, quero deixar uma nota sobre o seu autor, cujo
percurso académico me suscitou, ele próprio, a atenção.
Nascido na Bahia, em 1941, e doutor em Geografia e História pela
Universidade de Barcelona, Noelio Dantaslé Spinola concluiu o seu doutoramento
já com mais de 60 anos, sendo na atualidade Professor Titular da UNIFACS,
Salvador da Bahia. No prefácio do livro, referindo-se-lhe, o reitor da dita
instituição escreveu o seguinte: “O autor […] milita no espírito do grande
chamado de Marx para que os intelectuais não procurarem apenas compreender o
mundo, mas que se dediquem a transformá-lo (Spinola, 2009, p.23).
Não havendo
oportunidade aqui para fazer a recensão propriamente dita do livro, a partir da
minha condição de curioso da realidade histórica brasileira e professor de
economia regional, avançarei nos parágrafos seguintes alguns notas de leitura que,
porventura, irão ao encontro da curiosidade de alguns portugueses e traçarão
linhas de “continuidade” entre as realidades portuguesa e brasileira e, quiçá,
poderão motivar a leitura do livro.
Como primeiro
dado, que desde logo me escapava, quero invocar o evoluir histórico das
capitais do Brasil, para sublinhar como antecessoras de Brasília, o Rio de
Janeiro e Salvador da Bahia, por ordem inversa do momento histórico em que
essas cidades ocuparam essas funções político-administrativas. Este deslizar da
capitalidade política não parece ter sido um incidente com marca exclusivamente
política. Pelo contrário, como escreve Noelio Spinola logo a abrir o seu livro
e sublinha repetidamente ao longo de toda a obra, “No caso específico da Bahia,
seu declínio inicia-se com a transferência do Governo Geral da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763,
perdendo a província sua condição de capital política do país e todos os ganhos
inerentes a essa condição” (Spinola, 2009, p.37). Invocando outro autor
brasileiro, acrescenta de seguida que “isto se deveu ao facto do polo de
desenvolvimento do Brasil ter saído do Norte/Nordeste, firmando-se no Sudeste
(Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo). A descoberta do ouro nas Minas
Gerais e, posteriormente, o advento do ciclo do café, plantado inicialmente no
Rio de Janeiro e depois em São Paulo, deslocaram o eixo da economia,
marginalizando para sempre as províncias do Nordeste e do Norte” (Spinola,
2009, p.37).
A segunda nota
vai para a evolução dos padrões monetários no Brasil, em relação com a estranheza
da designação atual da moeda brasileira, o Real. Pretendo a-propósito assinalar
a falta de continuidade do nome da unidade monetária com as designações das que
a antecederam ao longo do século XX: Cruzeiro; Cruzeiro Novo; Cruzado; Cruzado
Novo; Cruzeiro; Cruzeiro Novo. Paradoxalmente, face ao que anoto antes e à
realidade política republicana brasileira, o antecedente da designação atual
remete para os Réis do tempo colonial, que sobreviveram (a moeda, digo) até
Outubro de 1942. Aliás, Spinola (2009, p.74) vai mais longe, assinalando que os
“RÉIS” se sugerem como “denominação derivada do ´REAL` que era a moeda
portuguesa dos séculos XV e XVI, na época do ´descobrimento`”.
Numa terceira e última nota, entendo fazer menção à implementação que
se deu a partir de certa altura de um conjunto de iniciativas públicas de
planeamento visando impulsionar a transformação da economia brasileira, em
geral.
Entre os planos produzidos merece menção o ´Plano de Metas`, ao tempo do governo de Kubitschek. Em
resultado dessa ação de planeamento, “de 1956 a 1960, o produto interno bruto
(PIB) crescei 8,1% e a renda per capita
5,2% ao ano, em média” (Spinola, 2009, p. 228). Esta atuação do poder público foi pensada, disse,
para acelerar o desenvolvimento económico mas, particularmente, a
industrialização do Brasil, induzindo o investimento privado, quer nacional
quer estrangeiro. Aparte a ênfase na indústria, a fazer lembrar o pensamento
prevalecente em Portugal na mesma altura do sector industrial como motor do
crescimento económico (“Industrialize-se o país que o resto irá atrás”), é
especialmente interessante reter o papel desempenhado por Celso Furtado nesta
fase da gestão da economia e do território brasileiro, ele que será,
porventura, o economista brasileiro ainda hoje mais conhecido na Europa.
Depois de ter
liderado tecnicamente o Codeno (Conselho de Desenvolvimento do Nordeste) e a
Sudene, uma agência de desenvolvimento regional de iniciativa central dotada de
amplas atribuições em matéria de desenvolvimento territorial, acabou por ser
ministro do governo de Goulart. No dizer de Albert Hirschman, citado por
Spinola (2009, p.232), a Sudene constituiu-se numa espécie de “ministério do
desenvolvimento regional, dotado de excecional força executiva”.
Em razão da
inspiração teórica das políticas e dos seus executantes, num comentário/balanço
produzido a propósito desta fase da gestão da realidade brasileira, secundando
outros autores, Noelio Spinola (2009, p.235) adianta que “Dificilmente se
encontraria, na história recente da economia brasileira, uma integração tão
estreita entre as estratégias teóricas de ação quanto aquela existente entre o
´Plano Trienal de Desenvolvimento Económico e Social` (Brasil, 1962), o ´II Plano
Diretor da Sudene` (Brasil, 1963), ambos referentes ao período 1963-1965, e o
estudo do GTDN (Brasil, 1959). Dificilmente,
também, se encontraram descompassos maiores entre o que preconizavam aqueles
documentos e a evolução da realidade sobre a qual deveriam intervir”
(itálico meu).
Esclareça-se
que o GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste) foi uma
estrutura criada pelo governo Kubitschek,
em 1956, que precedeu o Codeno e a Sudene, e foi responsável pela elaboração de
um diagnóstico aprofundado da realidade do território objeto da sua ação e,
particularmente, da questão agrária e da problemática originada pela seca que
atingiu a região em anos precedentes, e pela proposição de um conjunto de orientações
de política tendentes a reorganizar o sector e “a reverter o problema da oferta
de alimentos e a absorção do excedente populacional” (Spinola, 2009, p.215).
O livro tem muito mais que se possa comentar, para além de informação
abundante que disponibiliza sobre o tecido industrial da Bahia e do Brasil, nomeadamente
o número de unidades de produção existentes na Bahia em diversos momentos
históricos, com explicitação dos ramos de atividade, volumes de emprego e peso
relativo dos diversos sectores de atividade no seu tecido industrial. Para o
leitor português, tem o interesse adicional de se poderem encontrar aí dados
surpreendentes sobre paralelismos e impasses análogos vividos pelas economias
brasileira e portuguesa, entre outras coisas merecedoras de estudo e
ponderação. Tem entretanto o inconveniente de ser bastante longo, como
assinalei antes, e de multiplicar a apresentação de dados, tabelas e
referências bibliográficas que nem sempre facilitam o bom entendimento por
parte do leitor, particularmente por parte de alguém não especialista e/ou
menos conhecedor da história social, económica e política do Brasil. Nem por
isso deixa de ser um documento cuja leitura deixo de recomendar a quem busque
melhor conhecer a evolução histórica daquela economia e sociedade.
J. Cadima Ribeiro
Referência da
obra: Spinola, Noelio Dantaslé (2009), A Trilha
Perdida: caminhos e descaminhos do desenvolvimento baiano no século XX, Edição
UNIFACS, Salvador.