[Continuação]
Portugal é um país pequeno na extremidade ibérica, povoado, sucessivamente, por inúmeros povos em suas andanças à procura do Fim do Mundo, desde tempos imemoriais. Estou falando de neandertais e cromagnons que deitaram aqui seus vestígios por toda parte – guardados com carinho no Museu Arqueológico Martins Sarmento, em Guimarães, berço da Pátria portuguesa. Outro sítio, celta – Citânia de Briteiros- também está nesta cidade. A eles se sucederam, no curso de séculos vários outros povos, dando a esta parte da Europa um caráter de esquina do mundo, sobre a qual se debruçaram, como numa sacada, ansiando pelo mar oceano. Finisterra, para o homem – primitivo, clássico, medieval - inquieto em seu andar, sempre à cata de novas paragens. Começo da geografia continental para os modernos que atravessam o Atlântico, nos dias de hoje. Borda da história, como um acontecimento...Fato e fado, este não por acaso o evocativo musical do país, intercalando-se a cada passo.
Com efeito, aqui, mais do que em qualquer outro lugar, o tempo é a medida da eternidade sem compasso; o homem esta eternidade em seus passos. Portugal guarda consigo esse mistério como uma esfinge metafórica postada no umbral do infinito a clamar: Decifra-me! Seu canto dilacera os corações pasmando até mesmo ouvintes que nada entendem da letra. A só música basta e corta. A palavra saudade brota lapidada pela exclusividade do sofrimento português, como nenhuma outra, em qualquer idioma:
Oh águas do mar salgadas,
De onde lhes vem tanto sal.
Vem das lágrimas choradas
Nas praias de Portugal
(António Oliveira Ferreira, poeta português)
Um tão grande sofrimento teria que se refrescar em alegorias. Aqui elas estão por muitas partes, mas se sintetizam no azul e branco dos azulejos que percorrem ruas inteiras de várias cidades, pátios mediterrâneos e fachadas de muitos casarões ao largo do país e os interiores das “casinhas”. Como gostam dos diminutivos! E como eles se casam alegremente com os azulejos! Meu pequeno apartamento, em Covilhã, aqui é uma “casinha” e se alia à tradição. Abre-se diretamente no que poderia ser um mero corredor que distribui para os quartos, a cozinha, a sala e o banheiro, mas, lusitano, alarga-se como uma ante-sala mais ampla só para estampar seus azulejos. Olho embevecido - que maravilha! O azul e o branco como que nos trazem um pouco do céu ao alcance das mãos. Têm o mesmo efeito simbólico que as curvas de Oscar Niemeyer que viriam a sepultar as pesadas colunas enlaçando num mesmo gesto edificante os ares e o solo da modernidade. Os azulejos, enfim, estão para Portugal, como os tapetes para o Irão e como os frescos para o Renascimento e as curvas para Niemeyer.
E há a poesia, que, aliás, dá-se, aqui, como o próprio tempo. Ela está na confirmação da língua portuguesa, com Camões, secundando Homero na épica lusitana. Darcy Ribeiro retirou daí a convicção de que somos os herdeiros mais legítimos do helenismo: mistura de gentes, paixões dionisíacas à solta, o mar como fronteira e cinzel da razão, a criação poética como fundamento da filosofia. O caleidoscópio civilizatório. Noel Rosa que o diga ao assinalar a poesia como parte do cotidiano do morro brasileiro:
Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
A poesia atravessa toda a história de Portugal, vincando a prosa de Fernando Pessoa como se fossem versos:
Que há (de alguém) confessar que valha ou que sirva?
O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós;
num caso não é novidade, e no outro não é de compreender.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de
sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem
importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das
sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as
que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia paciências
durante o infinito do serão. Estas confissões de sentir
são paciências minhas. Não as interpreto, como quem
usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque
nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-
me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras
de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se
passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o
polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão
e a imagem fica diferente. E recomeço.
( F.Pessoa – Livro do Desassossego , pg. 45)
Assim, entre azulejos e versos, que inspiram a alma, chega-se à cozinha. Haverá algo mais sublime na civilização do que este corte entre o cru e o cozido? Estudos recentes, intuídos por Levy Strauss, um dos pais da Antropologia Moderna, demonstram que neste entre-acto, assim mesmo, cerimoniosamente, esteve o elo perdido entre o humano e seu ancestral. O levar o alimento ao fogo teve o mesmo sentido do pintar-se o corpo na busca de uma identidade. Uma diferenciação. Já não mais a coleta ou o devoramento instintivo das caças. Mas a mediação: o intervalo da consciência entre o apetite voraz e o desejo. Depois veio a mesa, como uma das mais decisivas instituições do Império Romano. “Ainda ensinaremos estes bárbaros a se banharem e a sentarem-se à mesa”, proclamavam os generais romanos em suas refregas pela conquista do mundo então conhecido... Séculos depois, restou aos europeus, aprendida a lição da mesa, sofisticar os pratos e inventar os talheres, tais como hoje os usamos. Tudo para que os americanos acabassem eclipsando estes saltos civilizatórios com a invenção dos fast-food... Mas quanta saudade da “Festa de Babete”...
[Continua]
Paulo Timm
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